Uma canoa no porto

18/01/2011 18:49

 No porto da minha cidade uma canoa espreita o rio. Altiva, solitária, move-se ao sabor do marulhar das águas da maré. Ao seu redor outras tantas canoas convivem atracadas ao porto, seguras por correntes e cordas de manilha ou plástico. O vai-vem das pessoas parece passar despercebido por elas que aguardam a hora da zarpar. O reflexo de seus cascos coloridos forma um diferente caleidoscópio em baixo dágua. Peixinhos e camarões cobrem-nas de beijinhos, ao mesmo tempo em que aproveitam para saborear os pequenos moluscos presos em seus cascos cheios de um verde-esperança, a cor do limo. A manhã parece que cai bem devagar sobre os ombros do meio-dia e estes parecem nem sentir o peso da tarde enevoada que chega com suas nuvens carregadas de raios e trovões. A canoa, no seu constante balançar, mas se compara a uma bailarina nervosa ainda no camarim de uma ópera medieval. O sol... Ah! O Sol! ... Debruçado na janela do Castelo de Rapunzel, tenta jogar suas tranças para que a canoa suba, mas desiste porque as opções são tantas e ele prefere ainda pesquisar qual a melhor. Absorto nesses pensamentos libidinosos nem repara a Lua, minguante, que o observa por detrás de uma nuvem formada por pardais incandescentes. E a canoa se mostra sorridente a bailar de lá pra cá, daqui pra lá, como quem ouve um trecho de uma das melodias inacabadas de Beethoven. O rio da mesma maneira que pacifica nossa alma, passa e fica dando voltas em torno da canoa como a lhe querer fazer a corte. Eu mesmo reconheço que aquela pequena montaria esconde em si o doce prazer de se saber amada, sentir-se mundiada, numa falsa solidão de quem se sabe desejada. O Sol desiste da conquista ao ver a Lua insinuar-se por detrás dos montes e com ela some envolto em denso temporal. O rio e os peixinhos já cansados com tantas tentativas e assédios, começam a se afastar com a baixa-mar, trazendo tudo à tona. Na lama deixada pelo rio a canoa pára de dançar, e as melodias que eram inacabadas, se acabam no infinito e se diluem. Mas a canoa sabe que é coisa de maré. Que hoje está na lama mergulhada em prantos, mas em seis horas apenas as águas voltarão a lhe fazer a corte e vão lavar seu corpo abandonado para voltar a brilhar e, desnudado, fazer pulsar o coração do Sol, do rio, dos peixes e o meu. (NL)

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