A permanente evolução dos perigos sociais
26/01/2011 17:51Essas histórias de que hoje a preocupação dos pais está mais aguçada do que antigamente não refletem realmente a verdade, pois, a cada tempo, aparece um tempero mais salgado que potencializa a vigilância paterna, mas, nem por isso se pode assegurar que é maior ou menor que em tempos de antanho.
Recordo-me que no inicio do século passado, em cuja primeira metade eu nasci, a grande preocupação dos pais era com a virgindade de suas filhas, para as quais ditavam ordens expressas de comportamento social, estipulavam horários para irem às ruas, mesmo durante o dia. À noite, quase nunca. Para evitarem que suas ordens fossem desrespeitadas pelas filhas ou mesmo pelos rapazes, faziam diariamente alusões ao Boto, à Cobra Grande, ao Curupira, à Matinta Pereira, ao Velho Camões, ao Padre-sem-cabeça, enfim, de forma tão convincente que conseguiam seu objetivo e a moçada cedo se recolhia aos aposentos e dormia, até porque havia somente rádios como diversão caseira e a programação era 90% sobre assuntos políticos - Voz do Brasil - longe do gosto da rapaziada.
Por décadas os pais conseguiram levar essas histórias adiante e as tornaram hereditárias, tanto que hoje fazem parte do nosso imaginário popular.
Mas, como tudo que é mal dura muito pouco, eis que começam a surgir questionamentos: Por que ninguém sabe quem é, e por que ninguém pode ver o Boto, a Matinta, o Curupira? Foi o primeiro levante dos jovens em defesa da liberdade de andar nas ruas à noite e namorar de dia. Os questionamentos embaraçavam os pais que sabiam mentir muito bem sobre esses mitos e essas lendas, mas não tinham maneiras de provar a eles o óbvio e dizer: isso não existe, até porque abririam as portas do paraíso terrestre. Mesmo assim, os mais ranzinzas, procuravam formas de manter as inverdades, mas sabiam que a liberdade avançava a passos largos.
Aos poucos as lendas e mitos passaram para a cabeça dos jovens como invencionices de seus avôs e eles então começaram a colocar as manguinhas de fora. Já chegavam a casa lá pelas 10 horas da noite, os rapazes principalmente. As moças passaram a dormir mais tarde, porque até as 21 horas ficavam nas janelas de suas casas admirando os rapazes libertos, saracoteando de um lado para outro e assim, platonicamente, mantinham seus namoricos.
Os pais passaram a dormir mais tarde, ou seja, só se quietavam quando o último revolucionário da família chegava.
Essa situação perdurou alguns anos até a constatação: os rapazes já podiam procriar na adolescência. A liberdade conseguida deu-lhes outra liberdade anexa: a sexual. Passaram a conhecer o sexo um pouco mais cedo do considerado normal pelos pais. Aí as antenas protetoras dos pais voltaram a dar sinal de alerta: os filhos poderiam ser pais muito cedo e as conseqüências disso seriam terríveis diante da falta de perspectivas de trabalho, emprego e renda. Logicamente que a barra iria pesar para esses pais, que teriam a responsabilidade de criar os netos e continuar a criação do filho-pai.
Surge então a salvação. A Pretoria. Nenhum rapaz sabia o que era essa tal de Pretoria. Sabia que era um cargo público, parecido com o do Delegado de Polícia, só que com mais poderes. A Pretoria – diziam os pais aos filhos – faz casar na hora o jovem que engravidar uma moça e terá de arcar com as despesas. O novo pai teria que trabalhar e sustentar o filho que estava a caminho. Isso foi o bastante para baixar o facho de quase a totalidade dos inimigos de Herodes. Com a certeza de saber que não acharia emprego fácil e nem teria o apoio dos pais em caso de gravidez, apodera-se do jovem a necessidade de dar uma espécie de stand by em seus projetos paternais. Para conseguirem que o jovem não trabalhasse, muitos pais alegavam que era preciso que estudassem antes de casar e que, entre estudar e trabalhar, a melhor opção era a primeira.
A Pretoria foi uma grande barreira na vida dos jovens da época, até começarem a aparecer pequenas luzes no final do túnel da ignorância juvenil: Alguns poucos rapazes descuidados, não conseguiram carpir o medo (como diria Paes Loureiro) se aprofundaram em seus namoros, e se aprofundaram tanto que conseguiram furar o cerco paternalista anticonceptivo. A boiolagem não gostou muito, mas foi um dos mais decisivos passos para a volta dos revolucionários de plantão em defesa de sua masculinidade. Esse avanço inesperado, mas natural, levou à loucura alguns pais que, já com fortunas definidas, não aceitavam a idéia de seu filho desposar qualquer uma a ponto de dizerem ao filho quando não gostavam da namorada que eles lhes apresentavam: “Essa uma não!” Os motivos: os mesmos de hoje. Moças pobres, geralmente de cor escura, de família que fugia ao status social do jovem ou por ser ela muito nova. Os conflitos familiares começam a tomar rumo de guerra santa e a queda-de-braços estava decretada.
O pior momento dos pais mesmo, foi quando as meninas, suas eternas prisioneiras noturnas, resolveram jogar seus cabelos de Rapunzel e passaram a sair também à noite. Primeiro apenas na porta de casa, depois, em pequenos bailes nas casas de vizinhos, até que a Praça foi o limite. Quando chegou a esse ponto os pais viram o mundo ruir a seus pés. Não tiveram mais sossego. A vida de cada pai passou a se desenrolar mais nas ruas do que no trabalho, no qual deixava a apreensiva mulher que ficava rezando com medo do que poderia acontecer se o marido encontrasse sua filha namorando. Seria peia na certa.
Nessas alturas dos acontecimentos a liberdade mostrava que era uma bandeira difícil de empunhar, mas que, quando empunhada, era difícil de ser derrubada e por isso os jovens deram continuidade as suas conquistas libertinas indo às ruas festejar. Daí em diante adeus à tranqüilidade dos pais. Não havia mais argumentos a apresentar como forma de proteção. Não se acreditavam mais nas figuras mitológicas, não se acreditava mais na Pretoria, não se acreditava mais na falta de oportunidades de empregos. O que se tinha de real na mente era que quem procura acha. Da mesma maneira com que se procurou um jeito para fazer um filho, da mesma forma serão achadas oportunidades de trabalho, e foi isso realmente o que aconteceu.
A paz passou a reinar, mesmo que meio camuflada, no seio das famílias. A chegada do neto, filho do filho ou da filha, servia para desanuviar as tensões. A Paz finalmente parecia que havia chegado para ficar.
Ledo engano! A falta de instrução, de emprego, de equilíbrio emocional por ter buscado responsabilidade além de suas possibilidades, marcou uma nova fase na vida das famílias: o abandono. Jovens papais, por conflitos com seu cônjuge, separavam-se e voltavam para casa de seus antigos pais, que se viam de novo às voltas com um novo problema: tentar a reconciliação para não desestabilizar as famílias. Novos cabelos brancos ficam a postos para iniciar sua missão na cabeça dos pais dos asilados.
Se ficasse por aí a preocupação dos pais, seria muito bom, mas eis que, com o advento de um mundo novo de conquistas, de invenções e invencionices, além das mutantes preocupações no decorrer dos tempos, os pais jamais pensariam que apareceria uma que seria como que a soma de todas as demais já existentes, acrescida de uma pitada de “casa-do-sem-jeito”: as drogas.
Inicialmente consumidas por um diminuto grupo marginalizado da sociedade, as drogas eram vistas por todos como uso de pessoas que não tiveram oportunidades na vida. Pessoas que foram marginalizadas pela sociedade por motivos tais que as isolou do convívio de todos, condenando-as ao abandono. Os usuários de drogas geralmente eram pobres pedintes que viviam da caridade alheia e por isso presas fáceis para a escalada das drogas no mundo. Logo as drogas passam a compor alguns rituais afro-asiáticos, indígenas, religiosos, indo aos poucos se propagando de tal forma que hoje é uma calamidade mundial.
Sem pedir licença, as drogas foram chegando ao âmbito social de cada estado brasileiro, encontrando nos jovens – estes já cheios de frustrações políticas, econômicas, religiosas, sociais, familiares – o campo ideal para sua proliferação. Iniciando com inocentes cigarros de palha silvestre, a rapaziada passou a ver na fumaça que saia de sua boca e narinas, a liberdade jamais alcançada. Gradativamente passava a se tornar um dependente sem que ele mesmo ou seus familiares percebessem. Eram adultos, donos de seus narizes e bocas, e por isso se achavam no direito de fumar e cheirar o que bem entendessem.
Mas, isso não parou por aí. O consumo foi aumentando e dessa forma se aproximando das faixas etárias cada vez menores, fazendo novamente surgir o exército de pais em defesa de seus filhos. Um exército que demorou muito a chegar e que veio sem estratégias capazes de combater o mal pela raiz. A preocupação dos pais era apenas com a defesa de seus filhos, sem na verdade fazerem um cerco para defenderem também a segurança dos amigos e colegas a eles mais chegados. Dos que ainda tentaram salvar seus rebentos poucos tiveram sucesso, pois o contingente de amigos e colegas que mergulharam nas drogas e os incentivava a usar era bem maior, mais expressivo e mais convincente do que a atônita vigilância paterna.
A oferta de várias formas de comunicação de massa veio facilitar a quebra da frágil vigilância dos pais que agora não mais contavam com os mitos e com os poderes públicos para lhes ajudar a criar bem seus filhos. Então se sentiram perdidos vendo a impunidade grassar no país e dando aos traficantes e consumidores de drogas um “paternal” apoio por conta de leis que mais os beneficiam do que os punem, fugindo da lógica normal de uma sociedade séria e respeitável.
O que mais tem preocupado os pais é a apatia dos órgãos repressivos. Estes mais se beneficiam desse estado de coisas do que o combatem, o que não é normal, já que prevenir é sua missão em defesa da sociedade. Em todas as escalas dos poderes nacionais pouco ou nada se faz para equacionar o problema que se agiganta e que nos tem levado ao poço mais profundo da indignidade humana. Homens que elegemos para defenderem a sociedade familiar brasileira usam o poder para se locupletar das vantagens que as drogas propiciam. E nós vemos com tristeza que a sociedade foi impotente para sozinha vencer a guerra contra um Minotauro que sacia sua sede com o sangue de nossos jovens.
Hoje o que temos? Uma geração enorme mergulhada e mergulhando no lodaçal mundo das drogas, usando de toda a sua potencialidade criadora para cometer toda sorte de abusos contra a pessoa humana que é refém dos hoje corrompidos jovens sem passado, sem presente e sem futuro.
As drogas mudaram a cronologia da vida. Foi-se o tempo em que os filhos sepultavam seus pais. Hoje, as drogas decretaram que é missão dos pais enterrarem os filhos por elas destruídos. Será que há uma dor maior que a de um pai que se sabe coveiro de seu próprio filho? Que sabe ter lutado tanto para evitar isso e que não contou com o apoio e com o dever do estado? Que assiste atônito, declarações absurdas que colocam neles, pais, a culpa pelo rumo que seus filhos tomaram? Que não sabe as razões de tantas ações contras os usuários de drogas e nunca uma sequer contra os que enriquecem fazendo chegar a eles essas “pedras” assassinas? Que busca na religião amparo para suas angústias e se depara com tantas denúncias contra tantos religiosos corruptores de menores?
Como podemos ver, a evolução para pior dos problemas sociais foi tão intensa que em menos de um século conseguiu fazer esse estrago todo no país, decretando a falência do estado, a decadência da sociedade, o descrédito da família, a inutilidade do ser humano. O homem conseguiu continuar sendo o próprio lobo do homem. Nada mal para um país que não dá a atenção merecida aos seus jovens. Pobre país!
Nonato Loureiro - Jornalista
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